Restaurações de casas antigas, para fins de comércio, converteram-se em tarefas, muito freqüentes, e desafiadoras, para arquitetos, decoradores, “designers”, engenheiros e empreiteiras envolvidas com o chamado “retrofit”. E os resultados finais, nos campos estético e promocional, são, quase sempre, de inegável e excelente qualidade.
A prática em patologias da construção civil urbana tem revelado, contudo, a insistente repetição de algumas intervenções que respondem por problemas capazes de comprometer a longa durabilidade das reformas e, até, a essencial salubridade dessas edificações.
Oportuno, portanto, chamar a atenção, do meio profissional, para algumas abordagens que se têm mostrado equivocadas e, muito frequentemente, nocivas :
1 TELHAMENTOS
1.1 CONFIGURAÇÃO EXISTENTE:
1.1.1 Estruturas de madeira (tesouras ou dispositivos afins).
1.1.2 Telhas de barro, dos tipos marselha (“francesa”), em goivas (”colonial”), etc.
1.2 INTERVENÇÕES MAIS FREQUENTES:
1.2.1 Redução de inclinação, nas “águas”, com ou sem troca de telhas.
1.2.2 Pinturas (ou colagem de películas refletivas) sobre faces expostas das telhas.
1.3 OBSERVAÇÕES:
1.3.1 Redução de inclinação, nas “águas”.
a) Cada tipo de telha impõe - e exige – um caimento mínimo; e as casas antigas costumam obedecer, de modo geral, tais inclinações.
b) Qualquer redução, dos ângulos originais, poderá gerar infiltrações (fatais goteiras), principalmente sob fortes chuvas.
1.3.2 Pinturas (ou colagem de películas) sobre faces expostas das telhas.
a) Telhas de mescla (de barro, de cimento-amianto e afins), precisam manter constante regime de troca, de umidade, com o ar ambiente; isto ocorre tanto nas faces expostas a chuvas como nos áticos confinados (umidade relativa do ar), de modo a alternar ciclos, relativamente uniformes, de saturação e de secagem.
b) Quando as telhas são “seladas”, na face exposta superior, a troca de umidade passa a ocorrer, apenas, pelo ar contido no ático. Resultado: as telhas tendem a “inchar”, nas faces inferiores, o que impõe deformações do tipo “encanoamento” e conseqüentes aberturas das frestas de encaixe (o que, por óbvio, favorece infiltrações), além de se tornarem mais quebradiças sob trânsitos eventuais.
c) Conclusão: pinturas precipitadas, sobre telhamentos, ainda que recebam nota dez em Estética, poderão ter nota zero em Física.
2 FACHADAS
2.1 CONFIGURAÇÃO EXISTENTE :
2.1.1 Paredes portantes de alvenaria, de generosa espessura, erguidas com tijolos maciços ou de 2 (dois) furos, usualmente assentes segundo o sistema “paramento inglês”.
2.1.2 Revestimentos de argamassa convencional, cobertos com caiação, pinturas à base de cimento e/ou de PVA comum.
2.2 INTERVENÇÕES MAIS FREQUENTES:
2.2.1 Descascamento total das faces externas, expondo os tijolos.
ou:
22.2 Restauração do revestimento de argamassa e aplicação de texturas ou tintas acrílicas.
2.3 OBSERVAÇÕES :
2.3.1 Descascamento das faces externas.
a) As argamassas utilizadas no assentamento de tijolos de barro eram – e ainda são – de traço relativamente pobre em cimento, pois isto é condição, básica, para que as paredes possam “trabalhar” de modo mais ou menos homogêneo (o mesmo vale para emboços e rebocos, que devem ter plasticidade compatível com a natural mobilidade do substrato).
b) Por outro lado, tijolos maciços – ou de dois furos – implicam em “malha”, de argamassa de assentamento, extremamente densa; significa dizer que tais alvenarias possuem alta presença de rejuntes, de argamassa, por metro quadrado. Ora, esta “malha absorvente”, associada à porosidade e aos furos expostos dos tijolos primitivos (“amarrações”), forma superfície particularmente sensível à absorção de chuva. Eis o motivo pelo qual edificações antigas, pelo mundo afora (salvo a “fachwerkhaus” alemã e casas assemelhadas, nas quais os beirais exerciam suficiente proteção pluvial), são revestidas e pintadas.
c) Tais “streap-teases” de fachadas, quando absolutamente inevitáveis (até por pedido, irrecusável, do cliente), devem estar associados, sempre, a uma perfeita hidrofugação das superfícies desnudadas; recomenda-se, para tanto, produtos à base de silano/siloxano, ou de acrilatos puros, solúveis em água. Atenção: fluidos repelentes, siliconados, de ação apenas superficial, são sensíveis à radiação solar e terão eficácia extremamente curta; mas serão, com certeza, os primeiros – ou únicos - a encontrar nas lojas “especializadas”. Questão, pois, de correta procura.
2.3.2 Restauração do revestimento e aplicação de texturas ou tintas acrílicas.
a) Os prédios ditos "antigos" – argamassados e caiados; ou pintados com tintas à base de cimento, etc - foram os últimos a "respirar" : umedeciam, por todos os poros externos e, também por eles, evaporavam de maneira uniforme e com velocidade suficiente para evitar exsudações rumo aos recintos internos.
b) Óbvio que exigiam lavaduras e repinturas mais freqüentes, "incômodo" este que vem servindo, há décadas, como "gancho" para justificar os "mantos asfixiantes" que estamos impondo às edificações urbanas, notadamente com o trio de acabamentos formado por "pastilhas de grés" (invariavelmente assentes sem juntas de trabalho), "granilhas" e películas acrílicas, sejam estas texturadas ("grafiattos" e afins) ou lisas.
c) De fato, tais produtos, sendo predominante estanques, não permitem que águas infiltradas por inevitáveis microfissuras (geradas por arrastos térmicos ou mecânicos) sofram adequada e tempestiva evaporação para o exterior; ora, como as faces internas das paredes de fachada não oferecem grande resistência à evaporação, não surpreende que estas sejam as mais costumeiras vítimas de danos (que envolvem emboços, rebocos, pinturas, carpetes, papéis de parede, espelhos, armários, roupas, etc).
d) Resumindo: os construtores antigos não dispunham dos derivados de petróleo que abençoam (e, também, infernizam) a atual construção urbana; mas sabiam, com certeza, com o que estavam lidando e como erguer uma edificação ecologicamente correta. De fato, parece grotesco, hoje, elocubrar sobre “feng-shui”, cristais, pirâmides, runas, etc, depois que a casa já foi convertida - por flagrante desinformação técnica - em literal e confortável estufa para criação de bolores . . .
3 JANELAS DE MADEIRA
3.1 CONFIGURAÇÃO EXISTENTE
3.1.1 Caixilhos e folhas, de madeira rija e nobre, cobertos por diversas camadas de tinta, á base de óleo (originais) e/ou de resinas sintéticas (repinturas posteriores)
3.1.2 Vidros assentes com mescla denominada “massa de vidraceiro”.
3.1.3 Folhas móveis abrindo para o interior e dotadas de “narizes” inferiores, balanceados sobre o peitoril (também de madeira), que possui, com freqüência, canelura e furação para expulsão de águas acidentais (chuvas com ventos fortes).
3.2 INTERVENÇÕES MAIS FREQUENTES:
3.2.1 Remoção total da pintura e aplicação de verniz, expondo a madeira – e a “massa de vidraceiro - à insolação direta.
3.2.2 Sobreposição de novos “narizes” (em reformas de caixilhos apodrecidos).
3.2.3 Tamponamento de furações, no fundo das caneluras de peitoris.
3.3 OBSERVAÇÕES :
3.3.1 Remoção total da pintura e aplicação de verniz.
a) Ao encontrar uma belíssima imbuia, sob as camadas de pintura, alguns restauradores costumam ter a idéia de deixar, à mostra, a decantada “verdade do material”. Para tanto, não é raro que ignorem mais de 100 anos de pintura (e o fato de que em Ouro Preto, no Pelourinho e no resto do planeta não existem janelas antigas sem tal proteção), e decide trocá-la por reles 8 ou 12 meses de envernizamento; ou, quando muito, por imunizantes de madeira, pigmentados.
b) Quanto ao verniz: ser for acetinado ou fosco, emprestará baixa proteção contra chuva; se for brilhante, a radiação solar atravessará o filme e romperá suas cadeias de coesão, gerando o mesmo problema. Atenção: recentes pesquisas (notadamente da BASF e empresas afins) apontam para componentes químicos capazes de aumentar a resistência, de vernizes, à insolação e ao ressecamento por ventos, para até 2 ou 3 anos; performance que, como se percebe, ainda não pode competir com uma simples e prosaica camada de pintura.
c) Os vidros foram fixados, aos quadros das janelas, com auxílio de baguetes (ou, apenas, de pequenos pregos) e mescla de gesso cré, alvaide, óleo de linhaça e óxido de chumbo (denominada "massa de vidraceiro"), cuja inegável eficácia, no passado, esteve vinculada, sempre, ao simples e óbvio cobrimento com pinturas (usualmente a óleo ou esmalte sintético). Com a açodada remoção da tinta, a ancestral e competente massa (seja original ou reposta na reforma) resulta exposta ao vento e às insolações, sem qualquer película protetiva; na sequência, não há qualquer surpresa: ressecamento, fissuras, retenção de umidade e progressivo descolamento.
3.3.2 Sobreposição de novos “narizes” de madeira.
a) Ao lados inferiores das folhas tipo charneira – que abriam para dentro - costumavam ser formados por peça única, de madeira, cuja seção se projetava, para o exterior, formando uma pingadeira ou “nariz contínuo” (ou havia justaposição perfeita, do tipo sambladura, entre dois perfis).
b) Não é raro encontrar, em janelas hoje restauradas (com “pouca verba”), a simples sobreposição de pingadeiras, aos perfis-base de seção retangular, através de pregos, deixando frestas por diferenciais de deformação das madeiras expostas (busca da “verdade do material”), pelas quais se infiltra a água da chuva.
3.3.3 Tamponamento de furações, no fundo das caneluras de peitoris.
a) Os construtores do passado sabiam (eram, pois, sábios) que as janelas dotadas de folhas que abriam para dentro eram vulneráveis à penetração de chuvas impelidas por fortes ventos. Por isto, costumavam executar caneluras, no perfil inferior da moldura fixa (peitoril), para coleta de tais águas e posterior condução, para fora, por engenhoso “dreno”, obtido por dois furos, na madeira, entre si angulados.
b) Por não perceberem a função de tais perfurações, alguns reformadores ordenam sua simples obturação; o que dispensa mais comentários.
4 PORÕES
4.1 CONFIGURAÇÃO EXISTENTE:
4.1.1 Embasamentos “corridos”, de pedra argamassada (operando como baldrames contínuos, usualmente sem estacas), que recebem cargas transmitidas pelas alvenarias portantes da edificação.
4.1.2 Vigamentos e assoalhos, de madeira rija, apoiando sobre os mesmos embasamentos.
4.1.3 Aberturas gradeadas (ditas “gateiras”), logo acima do passeio (e nos fundos, onde possível), para evaporação da umidade do solo, que se encontra usualmente situado, pelo menos, a 70 ou 80 centímetros abaixo das vigas de madeira, formando vazio comumente denominado “cave” ou “porão”.
4.2 INTERVENÇÃO MAIS FREQUENTE:
Eliminação do piso de madeira, seguida de aterramento do porão e assentamento de lastro, de concreto simples, destinado a receber contrapisos e pisos acabados.
4.3 OBSERVAÇÕES:
a) Até o advento do concreto armado, era quase obrigatório que os pavimentos térreos fossem formados por estruturas “voadoras”, executadas em madeira, sob pena de fatal ascensão, até as paredes, da umidade contida no solo.
b) A partir da virada dos séculos 19 e 20, os construtores adaptaram os pisos térreos ao uso do concreto, sob a forma de lastros simples, lançando-os (sobre terreno apiloado e camada de brita) nas molduras formadas por vigas-baldrame. Entretanto, para seguir defendendo as paredes de alvenaria contra a umidade ascendente, tinham o especial cuidado de assentar, sobre as vigas de fundação, largas tiras de papelão alcatroado, cujas abas (4 ou 5 centímetros além das larguras das vigas) serviam para cobrir as frestas capilares geradas pela inevitável retração do lastro. Este procedimento foi literalmente banido da construção civil brasileira; e sua falta responde, hoje, por centenas de milhares de paredes insalubres (faixas inferiores arruinadas) em todo o país.
c) Fica evidente que o uso do papelão betumado, à época dos erguimentos das casas dotadas de porão e assoalhos, era simplesmente desnecessário. De fato, a umidade evaporava do solo e não chegava a condensar sobre o madeiramento do piso, pois as “gateiras” respondiam pela tiragem do ar saturado.
d) O que acontece, pois, quando algum “espert” (não “expert”) tem a infeliz idéia de aterrar o porão e “lascar” um lastro de concreto por cima ? Simples: como o novo piso precisa nivelar com a cota acabada do assoalho original, o aterramento fatalmente entrará em contato com a alvenaria primitiva; aí, a casa, que foi salubre por cem anos, contrai súbita e quase incurável moléstia construtiva. De fato, o fenômeno somente poderá ser minimizado, depois, com complicadas (e onerosas) injeções de produtos à base de dióxido de silício ou semelhantes artifícios. Mas, aí, o autor, de mais essa “façanha”, já estará longe e, mais uma vez, “retrofitando” ...