Caros amigos,
Quem é da área de Construção Civil ou Arquitetura, certamente já escutou histórias e máximas sobre engenheiro x arquiteto.
Quando entrei na Universidade Federal da Bahia em 1988, no curso de Arquitetura e Urbanismo, as disciplinas eram estudadas cada uma na unidade de origem, assim, três vezes por semana nos dirigíamos para a Escola Politétécina para as aulas de Topografia. Lá estudavam juntos, alunos de Arquitetura e de Engenharia. Até aí, tudo bem, já sabíamos, pois já estudáramos outras disciplinas como Matemática, Física, Cálculo, etc.
Mas imaginem a nossa surpresa quando no primeiro dia de aula, o professor se apresentou dizendo:
-MEU NOME É GILMAR DA MATA GANTOIS, SOU ENGENHEIRO, NÃO GOSTO DE ALUNOS DE ARQUITETURA, DETESTO ESTA IDÉIA DE ENSINAR ALUNOS DOS DOIS CURSOS JUNTOS NA MESMA TURMA, E NÃO ADMITO FACILITAR NAS AVALIAÇÕES, PARA QUE OS ALUNOS DE ARQUITETURA NÃO SEJAM TODOS REPROVADOS, PORTANTO ESTUDEM, SE VIREM E NÃO ATRAPALHEM A MINHA AULA COM PERGUNTAS IMBECÍS...
Imaginem o quanto apavorados ficaram os alunos de Arquitetura, enquanto os de engenharia sorriam e desdenhavam das nossas caras.
As aulas transcorriam sem que ousássemos fazer perguntas e muito menos nos misturar aos alunos de engenharia.
Modéstia à parte, as ameaças daquele professor não me abalaram pois fiz arquitetura por convicção e sempre gostei de Construção Civil - obras, projetos, cálculos, etc.
O EXERCÍCIO
Determinado dia aquele professor passou uns exercícios na sala, e neles havia um que era uma poligonal, onde deveríamos fechá-la ("zerá-la") gráfica e analiticamente. Para minha surpresa, não havia meios que a fechasse... por várias vezes fiz e refiz os cálculos. Chamei o colega Sávio Ponte, que sempre estudava comigo, mostrei o meu questionamento e ele receoso, percebendo que eu queria questionar ao professor, me aconselhou revisar os cálculos novamente. Eu revisei jutamente com ele e chegamos à conclusão de que o erro estava num azimute do enunciado, mas ele não me encorajou a questionar.
Àquela altura eu já começava a tremer, sabia que poderia estar blefando, e o mico não seria dos pequenos. Tomei coragem, respirei fundo, resolvi enfrentar a fera. Minha voz tremia, quase não saía e comecei a falar sem me levantar:
-Professor, eu gostaria de questionar o exercício tal... pois acredito que não há como fechar esta poligonal...
Fui sumariamente interromdo: Gantois não se deu ao trabalho de se voltar em minha direção para me escutar enquanto eu falava. Ele estava lendo um jornal ou uma revista, (não me lembro), simplesmente falou firme sem considerar nada do que eu havia falado, ou pelo menos tentara falar:
-VOLTE, VÁ ESTUDAR E DESCOBRIR PORQUE VOCÊ NÃO CONSEGUE RESOLVER O PROBLEMA..." E continuou a desdenhar juntamente com os alunos de engenharia que sorriam de mim e claro... dos demais alunos de arquitetura.
Novamente e inseguro tornei a rever o exercício, repetidas vezes tirei provas, todas as provas que pude... convencí-me de que eu estava certo.
Àquela altura o colega Sávio já me encorava muito menos. alguns outros colegas solidários vieram à minha carteira, querendo que eu estivese certo, pediam para que eu fosse prudente. Depois de muito hesitar em um conflito psicológico, moral, desabafo, (sei lá o que), pensei: .oO "Posso pagar este mico novamente, mas não levarei pra casa esta dúvida."
DESAFIO FINAL
Levantei-me, a turma calou completamente e se voltou para mim, que ainda mais nervoso e trêmulo, dirigí-me até à frente, e de maneira que se tentasse falar normalmente a voz não sairia, falei gritando:
-PROFESSOR GILMAR DA MATA GANTOIS, NESTA INSTITUIÇÃO O SENHOR É PROFESSOR E EU SOU ALUNO, DESTA FORMA, O SENHOR TEM O B R I G A Ç Ã O DE ME ESCUTAR, ENTÃO LHE PEÇO PERMISSÃO PARA IR AO QUADRO DEMONSTRAR MINHA CONCLUSÃO ACERCA DESTE EXERCÍCIO...
Ele parou, fria e lentamente virou-se em minha direção, respondeu, desta vez em tom suave:
-Está aí o giz.
A sala de tão silenciosa, parecia um tûmulo, então peguei um giz e no quadro, comecei a calcular aquela poligonal, enquanto riscava o quandro, falava gritando tudo que escrevia e raciocinava, até que cheguei à conclusão, lembro-me que gritando de tão nervoso que estava concluí:
-...ENTÃO PROFESSOROR GILMAR, ESTA POLIGNAL NÃO FECHA, POIS O AZIMUTE DO PONTO (TAL) O LEVA PARA (TAL) DIREÇÃO, FAZENDO COM QUE A POLIGONAL NUNCA POSSA SER FECHADA. PEÇO AO SENHOR QUE ME MOSTRE ONDE ESTÁ O MEU ERRO E FALTA DE CAPACIDADE PARA RESOLVER ESTA QUESTÃO...
Àquela altura, o silêncio se consolidara. Após minha conclusão ninguém ousava falar ou fazer qualquer outro barulho, o professor ainda sentado e já voltado para o quadro, parou por alguns instantes e em seguida foi voltando-se lentamente para a turma. Eu continuei de pé esperando o que ele diria. Não é novidade lembrar que embora estivéssemos numa mesma sala, sentávamos separados alunos de engenharia e de arquitetura, como se houvesse uma parede dividindo a sala. Ele voltou-se para os alunos de engenharia e começou a falar em tom de repreensão, embora em voz asperamente baixa:
-HÁ 11 ANOS SOU TITULAR DA CADEIRA DE TOPOGRAFIA DESTA INSTITUIÇÃO...
Citou outras disciplinas das quais também era titular, continuou:
-...PARA PAGAR A MINHA ARROGÂNCIA E PARA MINHA DECEPÇÃO, NUNCA UM ALUNO DE ENGENHARIA - QUE EU SEMPRE PROTEGI E ELOGIEI - RESOLVEU ESTA QUESTÃO E, TAMPOUCO LEVANTOU QUALQUER QUESTIONAMENTO...
Voltou-se para o lado dos alunos de arquitetura e conitinuou:
-...MAS TINHA QUE SER JUSTAMENTE UM ALUNO DE ARQUITETURA, A ME APLICAR TAL FAÇANHA.
Voltou-se para mim e continuou:
-LHE PARABENIZO E PEÇO DESCULPAS A VOCÊ E A TODOS OS ESTUDANTES DE ARQUITETURA, PELAS COISAS QUE FALEI E PELO TRATAMENTO HUMILHANTE QUE SEMPRE LHES DEI AO LONGOS DESTES ANOS. A PARTIR DE HOJE NÃO VEREI MAIS DIFERENÇA ENTRE ALUNOS DE ARQUITETURA E DE ENGENHARIA, NEM OS TRATAREI COM DIFERENÇA...
Sem quaquer demagogia, de fato o professor Gilmar se tornou amigo da turma de arquitetura, inclusive meu. Não guardei qualquer mágoa dele referente a este episódio. Anos depois eu soube que ele veio a falecer.
Este fato aconteceu no segundo semestre de 1989 na Escola Politécnica da Ufba.